quarta-feira, 25 de maio de 2016

CICLOS


CICLOS
Gabriel Paolini Carvalheiro

É sempre tudo igual. Só rotina. Dia após dia, hora após hora, minuto após minuto, segundo após segundo. Nunca muda. Sempre, o grande e fino fazendo uma volta por minuto, o médio e médio uma volta por hora e o pequeno e grosso duas voltas por dia. Eu sou o maior representante da rotina.
Fico sempre na vertical, logo acima do criado-mudo, logo abaixo do teto, grudado na parede, que esquenta e esfria o tempo todo. Ao redor de mim há sete quadros, duas pinturas, três fotos e duas impressões de pinturas. As molduras dos quadros são todas de madeira bem clarinha, e a minha é de madeira bem escura. O criado-mudo retém sobre si uma pequena escultura em forma de pássaro, e é preto. Ao seu lado há uma cama de solteiro, onde, todo dia, um homem cansado, se deita a uma hora, sete minutos e trinta e dois segundos. As cinco horas, quarenta e sete minutos e vinte e três segundos, isto é, vinte e seis minutos depois de tocar um alarme em seu celular, ele se levanta, olha assustado para mim, pula para o outro lado da cama, onde há um armário preto, que ele abre com rapidez, pega o bolinho de roupa social e veste-a com pressa. Ele corre para a porta do quarto, que fica no pé da cama e é verde, assim como todas as paredes e o teto, calça seus chinelos de número trinta e oito-trinta e nove, e sai do quarto sem ao menos fechar a porta, deixando exposto um papel de parede listrado de azul e branco. E então tudo fica imóvel, exceto eu, até o homem voltar ao quarto, fechar a porta, e cansado se deitar novamente para dormir, assim recomeçando o ciclo da rotina.
Mas isso só acontece pois eu sou daqui, do mundo do cosmos, reinado pelo universo, onde tudo, gira e gira e gira em ciclos o tempo todo. Os elétrons ao redor dos prótons, as estrelas ao redor das galáxias, os satélites ao redor dos planetas, os ônibus ao redor das cidades, os planetas ao redor das estrelas, as músicas, os meses, os séculos, as horas, os éons, as semanas, os minutos, as décadas, os dias, as noites, os segundos, os anos, os milênios, as engrenagens. Os ciclos são as coisas mais naturais e mais antigas possíveis, nada pode ultrapassá-los. A vida, a mais complexa coisa existente que os humanos foram capazes de conhecer, é feita em ciclos. De manhã tem quatro pernas, à tarde tem duas e de noite três.

terça-feira, 3 de maio de 2016

FANTASIA


FANTASIA
Gabriel Paolini Carvalheiro

É sempre tudo igual. Só rotina. Dia após dia, hora após hora, minuto após minuto, segundo após segundo. Nunca muda. Sempre, o grande e fino fazendo uma volta por minuto, o médio e médio uma volta por hora e o pequeno e grosso duas voltas por dia. Eu sou o maior representante da rotina.
Fico sempre na vertical, logo acima do criado-mudo, logo abaixo do teto, grudado na parede, que esquenta e esfria o tempo todo. Ao redor de mim há sete suadros, duas pinturas, três fotos e duas impressões de pinturas. As molduras dos quadros são todas de madeira bem clarinha, e a minha é de madeira bem escura. O criado-mudo retém sobre si uma pequena escultura em forma de pássaro, e é preto. Ao seu lado há uma cama de solteiro, onde, todo dia, um homem cansado, se deita a uma hora, sete minutos e trinta e dois segundos. As cinco horas, quarenta e sete minutos e vinte e três segundos, isto é, vinte e três minutos depois de tocar um alarme em seu celular, ele se levanta, olha assustado para mim, pula para o outro lado da cama, onde há um armário preto, que ele abre com rapidez, pega o bolinho de roupa social e veste-a com pressa. Ele corre para a porta do quarto, que fica no pé da cama e é verde, assim como todas as paredes e o teto, calça seus chinelos de número trinta e oito-trinta e nove, e sai do quarto sem ao menos fechar a porta, deixando exposto um papel de parede listrado de azul e branco. E então tudo fica imóvel, exceto eu, até o homem voltar ao quarto, fechar a porta, e cansado se deitar novamente para dormir, assim recomeçando o ciclo da rotina.
Mas isso só acontece pois eu sou daqui, do mundo do cosmos, reinado pelo universo, onde tudo, gira e gira e gira em ciclos o tempo todo. Eu poderia ser do mundo da fantasia, onde o que reina são os desejos realizados, onde não há rotina. Mas não posso. E por que não? Porque existem os mecânicos. E os mecânicos são escravos dos médicos, que são intrusos, impostores que vêm do mundo da fantasia e que fingem ser humanos, para afastá-los de fantasia.
Os médicos… Eles são as pessoas que cuidam dos humanos, como é que…? Exato. É exatamente assim que os médicos impedem os humanos de ir à fantasia. Os médicos fizeram os humanos acreditarem que a rotina é a única coisa que ela não é: boa.
E então eles disseram que as drogas alucinógenas são ruins, porque não deixam pessoa seguir com a rotina, mas na verdade são estas drogas alucinógenas, que quando fazem os humanos “morrerem” os levam à fantasia, assim como quando nós, os eletrônicos (relógios, computadores, celulares, TVs, tablets, controles remotos, e etc.), molhamos nossos circuitos e “quebramos”, também vamos à fantasia. Mas os mecânicos não deixam. Logo eles vêm para nos “consertar”.

sábado, 16 de abril de 2016

TER OU NÃO TER SAPATO


TER OU NÃO TER SAPATO
Gabriel Paolini Carvalheiro

Quem não tem sapato é alguém que resolveu que a vida havia acabado. Sapato é difícil, embora empolgante de se conseguir. Só tem sapato quem achou pelo menos três marcas que tem o número perfeito, com a forma perfeita, que nem fica apertando o dedão, nem que fica sobrando espaço entre o peito do pé e a língua, e muito menos aquele que tem os buracos do cordão sem revestimento de metal. Sandália, meia, chinelo, pantufa, Havaianas, papete, tamanco, salto alto, médio, baixo ou até mesmo um tênis de corrida é fácil. Pra começar meia mancha super fácil, tem dez tamanhos por peça, é impossível não caber, a menos que você seja uma chinesa no norte da Europa. E ainda por cima sandália ou chinelo são, telas de mosquito rasgadas, óculos de natação sem borracha, celular touch sem película nem capinha, saco de lixo fino, passarela sem guarda-corpos, o peito do pé fica exposto ao público, à vista de um lince, aos ouvidos de um cego. E não há coisa melhor no mundo para escondê-lo do que o sapato.
Não tem sapato quem nunca se sentiu satisfeito ao chegar em casa depois de um temporal, tirar o sapato e ver o pé seco, impecável, limpo ao mesmo tempo que seu salvador, o escolhido para este trabalho, é colocado em sua banheira espumada de detergente, para descansar e se preparar para sua nova aventura, a entrega do trabalho. Não tem sapato quem não se sente protegido, ao lado de um escudeiro quando enfrenta a caminhada até a padaria, com o mato raspando no cordão, as bostas do cachorro do vizinho passando a dois milímetros do sapato e o mendigo, descalço do seu lado pegando profundamente um resfriado. Quem não tem sapato é quem nunca teve nojo de sentar de perna de índio, ou em cima do calcanhar porque nosso muro estava pichado. Quem não tem sapato não sabe como é bom saber que a porta está bem trancada, a sete chaves. Quem não tem sapatos só encosta a porta. Quem não tem sapato não sabe qual é a sensação de lembrar a senha do cofre depois de um longo tempo tentando. Quem não tem sapato, mora em casa, uma casa de muro baixo, sem sistema de segurança e em São Paulo. Quem pinta a unha do pé é tudo isso, e ainda com joias penduradas na porta. Quem nunca teve sapato não sabe como é importante pagar o condomínio com empresa de segurança, e que quando não pagamos ficamos inseguros e medrosos sem nosso Dumbledore.
Se você ainda não tem sapato é porque não sentiu o gosto pelo paraíso, vive entregado as propagandas da Quechua, da Nike, da Vibe ou da Quick. Saia do piloto automático, entre na turbulência e quando saíres verás tu estarás ouvindo Mozart, ou Milton Nascimento, não mais funk carioca ou o pop da Katy Perry.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

ENTREVISTA


ENTREVISTA
Gabriel Paolini Carvalheiro

            – 76 reais na conta amigo, assim não dá, logo logo você morre.
            – Quem vai morrer é você que não comeu a Janis Joplin e nem pois a mão na bunda da Jim Morrison. Ninguém merece! Nos tempos antes da Bosta o pessoal me daria um dinheirinho e não me faria uma entrevista!
            – Mas logo sai o iPhone 7 e o dinheiro tá contado pra comprá-lo.
            – Tudo bem cara, pode comprar seu iPhone, mas não venha querer entrevista de mim. Eu proíbo a Folha de publicar uma notícia sobre mim
            – Não serguei, desculpe, mas sem dinheiro desta entrevista eu não compro o iPhone!
            – Tá desculpado, mas repórter não responde, só pergunta, e quanto ao iPhone se vira meu filho, pede dinheiro pra mamãezinha.
            – Se bem que era esta a única solução que eu pensei, brigado Serguei, até a próxima tchau!
            – Tchau moleque, e vê se pensa no que eu te disse, hein?
            – Ok Serguei
            – Foi só pra rimar, né seu moleque desgraçado, sai logo da minha frente e vai mandar essa bosta pra Folha logo, que eu sei que cê vai mandar, vai!!!

ESCOLHA


ESCOLHA
Gabriel Paolini Carvalheiro

            Será que eu levo o Tang de tangerina ou o de laranja? Acho melhor o de uva, o Paulo gosta mais. E o de maçã?… Acho melhor não, o Paulo não gosta muito. É, mas eu queria dar um para as crianças da patroa quando eu voltar, só que elas só gostam do de laranja. Podia ser um de laranja e um de uva. É, mas eu acho o de tangerina muito mais suculento Além do mais o de uva nunca dissolve, sempre fica uns nojos boiando, parece até Ovo Maltine. Hãaã! Dá ânsia de vomito só de pensar. Acho que eu vou pegar o de tangerina mesmo, que eu gosto mais… I! Já faz mais de uma hora que eu tô aqui! Eu vim pra comprar só o pãozinho e o queijo pro café da manhã! Que será que a patroa acha que eu tô fazendo?! Caraca! A cestinha já tá cheia! Lisa, onde é que você tá com cabeça? Fica mais de uma hora no supermercado em horário de trabalho e nem percebe! Ah…! Também, aquela sessão dos chocolates… Tinham tantos que eu fiquei meia hora só pra escolher. Lisa, não era nem pra você comprar chocolate, menina! Hmmm… Mas aquele Laka, hein? Pena que eu peguei o Lindt de morango. Nem parecia tão bom, eu comprei mais porque minha amiga disse que era mais estiloso. Não sei. Eu vou tentar. Mas só desta vez, porque aquele Laka… Hmmm… Ele com certeza iria ofuscar até o brilho dos meus cabelos loiros encaracoladinhos. Menina! Foca! Qual Tang você vai comprar? Acho que vai ser um de laranja, um de tangerina e um de uva, assim agrada a todo mundo, mas… I… O dinheiro não vai dar, aquele Lindt é mó caro, é melhor eu não levar nenhum Tang mesmo, porque acho que nem dá pra ficar devendo no Pastorinho.